"Sou sádica, gosto de causar dor e humilhação, tenho meus escravos. Dentre as práticas que mais gosto, posso citar shibari, bondage, spanking, facesitting, asfixia erótica, afogamento, inversão, entre tantas outras coisas. Mas certa vez fiquei tanto tempo sentada no rosto de um parceiro (facesitting) que, quando me levantei, vi que ele estava desacordado. Fiquei apavorada e, tremendo, peguei o telefone para ligar para a emergência. Felizmente ele acordou com dois tapinhas na cara, aí o tesão foi maior ainda, mas essa é uma prática que procuro evitar.”
Se essa declaração chocou ou se você não entendeu metade dos termos, não se preocupe: o sadomasoquismo tem vocabulário próprio e seus praticantes fazem questão de se diferenciar do resto das pessoas, chamadas por eles de ‘baunilhas’ (sabor mais comum de sorvete). Mas, acredite: estas práticas estão mais próximas do que você imagina. Aos 35 anos, a promotora de eventos A., de Salvador, autora da declaração acima, é praticante de BDSM há oito anos. O termo significa Bondage, Disciplina, Sadismo e Masoquismo e engloba uma gama inimaginavelmente extensa de práticas e intensidades.
“Algumas pessoas se excitam com sadomasoquismo e outras não. Da mesma forma que existem pessoas que curtem sexo anal ou oral e outras não... É tudo uma questão de gosto. E gosto cada um tem o seu”, pondera A. Segundo Mabel Cavalcanti, terapeuta sexual de Brasília, “o sadomasoquismo é um omportamento que se caracteriza pelo prazer/dor ao maltratar e ser maltratado. Isto implica em graus para mais ou para menos, podendo chegar a condições totalmente patológicas”, ela explica.
Encontros de dor e prazer
Os encontros BDSM podem ser como uma válvula de escape para quem não consegue incluir esse estilo em sua rotina. “Infelizmente vivemos em uma sociedade machista e um tanto quanto hipócrita, em que todos têm fantasias sexuais e desejos, mas, por medo e tabus, os escondem debaixo do tapete. Então procuram se realizar às escondidas, para não serem taxados de doentes e tantos outros adjetivos nada agradáveis”, lamenta A., que não se relaciona com quem não compartilhar de suas práticas. “Sou bem resolvida e não estou fazendo nada de errado, mas não me relaciono com quem não goste do jogo, seria hipocrisia de minha parte”.
I., de 38 anos, organiza festas temáticas em clubes BDSM em São Paulo e se diz sádica. “O sadomasoquismo ainda é um assunto pouco comentado. Geralmente quem gosta mantém isso em segredo no trabalho, na família e até com os amigos mais chegados ou esposa/marido. No meu caso, todos os amigos e a família sabem de minhas preferências, só que não mensuram, não imaginam a extensão da coisa. Mas não tenho que contar tudo o que rola nos meus relacionamentos, mesmo porque também não fico perguntando o que meus amigos ou familiares fazem entre quatro paredes”.
Para a terapeuta sexual, todo esse segredo tem um porquê: “Trata-se de algo que beira o limite do desvio social, da parafilia (quando o prazer sexual não se encontra na cópula mas em alguma atividade/objeto paralelo) fugindo assim à relação de amor/prazer que dignifi ca e enobrece a sexualidade humana”, opina.
Geralmente o ato sexual está incluído na prática BDSM, mas, em muitas vezes, apenas por meio da masturbação e não da penetração, já que somente a própria cena ou vestimentas e objetos já bastam para provocar o maior dos tesões nos praticantes. Para quem é submisso, por exemplo, só o fato de estar em uma posição inferior, sendo humilhado, já basta para sentir enorme prazer, não sendo necessária a cópula em si.
Mabel Cavalcanti explica que “existem pessoas que sentem prazer em maltratar animais, monumentos, etc, pelo simples desejo de chamar a atenção por seu poder de destruição, já que se sentem incapazes de aparecer de forma positiva”. A terapeuta sexual acrescenta: “Várias são as causas que podem desencadear esse tipo de conduta. Uma das mais encontradas nos relatos terapêuticos remonta à infância, quando a criança só conseguia a atenção das pessoas amadas através de punições”.
Sexo, poder e humilhação
A comerciante T.*, paulistana de 31 anos, descobriu o universo do ‘bate e apanha’ há quatro anos, apesar de ter se identificado submissa já aos 18. “O sadomasoquismo pode ser válvula de escape, e assim como o sexo, ser usado para aliviar tensões, ser um gosto que o seu inconsciente desenvolveu por conta de algum trauma, abuso ou algo do gênero. Para mim o lado psicológico é mais forte, curto me sentir dominada, preciso de uma pegada mais forte, ser imobilizada. Gosto de certas humilhações, de não ter o controle, e por causa disso me identifiquei como submissa, bondagista”, conta ela, que diz ainda não saber separar as práticas BDSM do sexo: “Eu não consigo separar, mas tenho amigas masoquistas que sentem prazer simplesmente na dor. Então, elas conseguem desvincular o sadomasoquismo do sexo. Eu, particularmente, não. Eu sinto tesão, meu prazer é sexual, o sadomasoquismo, para mim, é como a preliminar do sexo”.
Paulo de Souza é psicólogo clínico e terapeuta de casais na capital paulista e faz a seguinte observação:“Embora os sadomasoquistas considerem-se experts no desempenho sexual e na obtenção de orgasmos, pode-se pensar em sadomasoquismo sem orgasmos, sem uma conotação sexual explícita, se pensarmos na ótica dos fenômenos psíquicos, na adesão ao sofrimento moral ou ao prazer com o controle”.
Para T., a adrenalina de apanhar, ainda que de leve, traz um prazer extra, mas ela costuma ter relacionamentos com ‘baunilhas’ e entende os motivos de tanta curiosidade e desconfi ança em relação às suas preferências: “Ainda existe muito preconceito com relação ao sadomasoquismo. A maior parte das pessoas ainda vê essas práticas como ‘taras’ de pessoas ‘doentes’. Mas o grande problema é a falta de conhecimento sobre o assunto e a repressão sexual que muitas pessoas ainda sofrem ou se impõem”.
O psicólogo vê que os adeptos de comunidades sadomasoquistas repudiam veementemente a associação que muitos leigos fazem de seus hábitos com a violência e descontrole, já que são minuciosos justamente no saber fazer, em como produzir prazer. Repudiam também a associação com a agressão, já que na relação sadomasoquista não existe uma pessoa que impõe à outra sua vontade, ao contrário: quem se submete escolhe se submeter por seu próprio prazer. O prazer é necessariamente consensual e, além disso, existe um código, uma palavra de segurança pré combinada entre os parceiros para que se saiba a hora exata de parar.
“Eu acho que, quando se ouve uma pessoa afirmar que gosta de apanhar até ficar roxa, que adora um chicote, que morre de tesão de levar uma marca com ferro quente, fica difícil dissociar da violência. Um homem que gosta de ser pisado, uma mulher que gosta de ter ganchos enfiados na pele... não tem como culpar as pessoas de acharem o sadomasoquismo um absurdo. Você passa a vida aprendendo a respeitar, a não ferir, a honrar e, de repente fica sabendo que uma pessoa conhecida adora simulação de estupro... É de dar nó na cabeça de qualquer um mesmo. Mas o que os leigos precisam entender é que o BDSM tem como base uma regra simples e funcional, que é a prática ser SSC, ou seja, são, seguro, consensual”, explica T.
O preconceito óbvio Paulo de Souza conclui que a cena de uma pessoa amarrada e levando palmada pode ser vista como excessivamente agressiva e insuportável, independentemente do fato de que quem apanha tenha consentido ou chegado ao orgasmo desta forma. “Os grupos e práticas pouco conhecidas atraem tanto a curiosidade quanto o preconceito. Estigmatizar pode ser até uma estratégia do leigo para evitar a atração que a curiosidade revela. Tem gente que até associa o sadomasoquismo ao uso de drogas ou a seitas obscuras, o que me parece evidentemente um preconceito, porque o movimento e as práticas sadomasoquistas revelam-se muito mais amplos e públicos do que seitas obscuras, e o uso de drogas se dá em qualquer setor da sociedade, em diversos contextos”, avalia o psicólogo.
Depois de se divorciar, a produtora teatral carioca M., de 47 anos, se descobriu sadomasoquista: “Descobri esse mundo BDSM depois que me separei e passei a me conhecer mais, já que era totalmente leiga e crítica como muitos. Pratico a dominação psicológica, spanking (causar a dor com chibatas, chicotes, chinelos), velas e podo (pisar, pular e esfregar os pés na face do parceiro). Sempre que possível, em bares temáticos ou hotéis, com meu namorado. Dentro desse novo mundo eu conheci pessoas amorosas, que se respeitam e se ajudam. Não querem saber da sua classe social ou da sua conta bancária, apenas de você como pessoa. Pelo menos é assim que me sinto nesse meio. Tenho o respeito de todos, mesmo sendo uma pessoa comum e iniciante, alegra-se M., que está no BDSM há um ano.
Com suas experiências, ela diz como interpreta o universo BDSM: “Claro que cada caso é um, mas, de maneira geral, existe muito o lance da busca pelo complemento dentro do BDSM, do seu oposto. Por exemplo: se é um homem rico com um cargo importante, se tem poder, geralmente gosta de ser tratado como um animal, pisado e humilhado; já que ele é, em sua rotina, dominador, acaba tendo a necessidade de ser subestimado na hora do sexo. Uma vez que não consegue isso na vida pessoal, ele encontra no meio BDSM. Não é regra, mas uma situação dessas é comum, sim”.
Para botar fogo na relação
Para quem está pensando em apimentar a relação com brincadeirinhas BDSM, o psicólogo alerta: “Sessões BDSM podem ter toda a formalização de uma cena previamente arranjada e contratada, com requintes de figurino e representação, bem como podem surgir no calor de uma relação sexual sem significar nada mais do que o prazer daquele momento. O acesso do casal às práticas lúdicas sadomasoquistas, de forma consensual, pode trazer um grande incremento erótico e cumplicidade para o casal. Mas se um dos dois se entusiasmar com as práticas sadomasoquistas e o outro não, pode abrir uma enorme fissura na vida afetiva e sexual do casal”.
Baunilha, dominadora, submissa, curiosa, sádica ou masoquista, o trato é: se são dois adultos lúcidos em busca de seu prazer, então os atos são válidos. Não importa quem manda e quem obedece. Outra coisinha: as pessoas mistificam muito o sadomasoquismo pelo seu extremo: dor, chibatadas, chicotadas e humilhação, mas no universo do BDSM cabe muita coisa, como os fetiches por roupas e sapatos (a clássica visão da dominadora de roupa de couro e salto alto), assim como coisas mais simples, como a privação de sentidos, que à primeira vista pode soar forte, mas, se pararmos para pensar, uma venda é privação de sentido, não é assustador e pode ser muito prazeroso.
“Eu acho que se uma pessoa sabe que dentro desse universo existem coisas simples como amarrar o parceiro na cama e explorar o corpo dele, o uso da venda, do gelo... talvez houvesse um pouco menos de misticismo e de repulsa em torno do sadomasoquismo”, complementa T.
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